23.6.11

Adriano Vasconcelos: A Missão do Chef

A história da Gastronomia é muito recente, já a da Culinária é tão antiga quanto o primeiro hominídeo. Entendemos Culinária como o arcabouço dos usos e costumes da relação dos homens com a comida. A Culinária é a expressão cultural dos fazeres e comeres tradicionais. Já a Gastronomia é a ciência que codifica e multiplica estes fazeres. A Gastronomia está para o rádio como a Culinária está para a música.
Foi durante o renascimento comercial europeu que formou-se a Gastronomia, fruto da expulsão dos mouros do sul da Europa e da consequente recentralização do poder, no século XV. Com a crise do feudalismo, o germe do absolutismo em desenvolvimento, e contaminado pelas especiarias trazidas dos quatro cantos do mundo, aparece nos palácios europeus a figura do cozinheiro real. Responsável pelo preparo das iguarias que eram servidas aos nobres que agora vivem no palácio debaixo dos olhos reais.
Quanto maior a centralização do poder, maior o palácio, mais absoluto o monarca, maior a equipe de cozinha. Grandes equipes necessitavam de mais que cozinheiros experientes, exigiam um chef, o responsável pela perfeição na confecção e serviço das refeições nobiliárquicas.
No século XVII eram numerosos os chefs, na Itália, na Espanha, em Portugal, na Alemanha e principalmente na França. Ah, a França. No castelo de Chantilly, Vatel, chef e cerimonialista, criou o creme de nata batida que se tornaria mundialmente famoso.
Era esta a rotina destes exímios profissionais, buscar em todas as partes receitas, técnicas, costumes, ingredientes e reproduzir tais receitas, codificando-as nos primeiros manuais de cozinha, recriando-as muitas vezes pelo seu aperfeiçoamento para os educados paladares da nobreza.
No palácio de Versailles no século XVIII havia 5 mil nobres vivendo em total opulência enquanto milhões de franceses passavam fome. Não deu outra. A população organizada pela burguesia (comerciantes ricos) e ilustrada pelo iluminismo, decretou o fim do Antigo Regime e decepou a cabeça gourmet de seus beneficiários. Foi a Revolução Francesa a responsável pelo desemprego de centenas de ajudantes, auxiliares, cozinheiros, garçons e chefs.
Não tendo outra saída, os profissionais de mesa e fogão, para não ficar na sarjeta, criam uma nova forma de subsistência. Vendem seus conhecimentos para restaurar as forças dos doentes, nos chamados restaurantes. Restaurante, porque restaurava. Tinham um sentido farmacológico, e atendiam a pessoas debilitadas com sopinhas e caldos, os consomês.
No século XVIII aparecem os primeiros bistrots, cafés e brasseries. Atendendo à pequena burguesia francesa. Uma revolução política levou a uma revolução gastronômica. Todo o luxo dedicado aos nobres estava agora ao alcance de todos. Todos que pudessem pagar por ele nos luxuosos restaurants parisienses.
Quase três séculos depois acontece nova revolução gastronômica. Globalização da economia, crescimento econômico, importações de neo-especiarias, desenvolvimento de centenas de cursos superiores de Gastronomia. Os poucos chefs que em poucos restaurantes agradavam aos paladares de poucos abastados são gradativamente superados por milhares de jovens chefs advindos de centenas de escolas superiores e por milhares de pequenos restaurantes que divulgam a cozinha clássica que já foi, um dia, para 5 mil nobres. Uma nova revolução que, se por um lado populariza a alta cozinha, por outro traz consigo o grande risco de vulgarizar a cozinha de autor, criativa e inventiva, e desprezar a cozinha tradicional. São os novos chefs que pintam pratos, cobram fortunas e assassinam a Culinária.
Daí a importância de se voltar às raízes da profissão, à codificação da culinária, ao resgate da cozinha tradicional, à divulgação da riqueza cultural construída durante 6 mil anos de história. O clássico é chamado assim porque sobrevive ao tempo e ao espaço. E o conhecimento erudito, a episteme.
Técnicas, processos, receitas e prazeres que se tornaram eruditos pela sua complexidade alcançada através de milhares de anos de experiência e sofisticação criaram delícias que perduraram séculos e que são, em sua maioria, anônimas. É o caso do nhoque, da lasanha, do sushi e do sashimi, do churrasco e do chimarrão, do charque e do einsbein. Receitas anônimas e insubstituíveis que merecem ser conhecidas do grande público.
Esta é a missão dos novos chefs: conhecer, guardar e divulgar as riquezas culinárias do mundo.

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